Da Revista Época
A história
do rapaz que recebe do SUS o tratamento mais caro do mundo revela um dos
maiores desafios do Brasil: resolver o conflito entre o direito individual e o
direito coletivo à saúde.
imagem: revistaepoca.globo.com |
CAPÍTULO 3 (final)
E
SE RAFAEL FOSSE INGLÊS?
No caso de
doenças raras como a de Rafael, cada país age de uma forma. Na Inglaterra, o
governo garante o Soliris apenas aos pacientes que tenham recebido pelo menos
quatro transfusões de sangue no último ano. Na Escócia, o governo não paga.
Nos Estados
Unidos, alguns planos de saúde oferecem o remédio. A maioria não o garante. O
Medicare, o sistema público de saúde para maiores de 65 anos, paga a droga
apenas em raras situações. No Canadá, que dispõe de um sistema público de saúde
abrangente, apenas uma província (Quebec) garante o Soliris. No Chile e na
Argentina, alguns doentes conseguem o remédio ao processar os planos de saúde
ou os governos.
É possível
fazer diferente. Com critérios técnicos, gestores públicos poderiam decidir
como aplicar o orçamento da melhor forma possível, para garantir a saúde do
maior número de cidadãos por mais tempo. Existem ferramentas matemáticas
capazes de comparar os benefícios oferecidos por diferentes formas de cuidado
médico.
Para cuidar
disso, o Reino Unido criou o Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência
Clínica (Nice). Em atividade desde 1999, o órgão faz esses estudos e realiza
reuniões com representantes da sociedade (pacientes, médicos, indústria
farmacêutica) para debater o que deve ou não ser oferecido pelo National Health
Service (NHS), o sistema que banca 95% de toda a saúde no país. O que o Nice
decide oferecer vale para todos. Isso não quer dizer que os britânicos estejam
satisfeitos com os serviços prestados. Os protestos são constantes.
Em 2008, doentes
de câncer renal fizeram uma grande mobilização para exigir que o governo
oferecesse uma nova droga. O remédio só foi adotado muitos meses depois – mesmo
assim para pacientes que preenchiam critérios predeterminados. Não há exemplo,
no mundo, de país que tenha um orçamento tão elástico que seja capaz de
satisfazer todos os desejos. Há sempre um grupo exigindo mais drogas para
alguma doença. Mas, pelo menos, as regras podem ser transparentes e universais.
“Economias emergentes como o Brasil
enfrentam desafios semelhantes aos do Reino Unido: enquanto as doenças crônicas
avançam e demandam mais e mais recursos, os dois países têm de zelar pela
equidade no acesso à saúde”,
diz Kalipso Chalkidou, uma das diretoras do Nice. “Temos trocado experiências com o governo brasileiro e esperamos
estreitar essa parceria em 2012.”
Por
enquanto, o volume das decisões judiciais leva o Ministério da Saúde a pedir
suplementações orcamentárias ao Congresso Nacional. “Poderíamos estar pedindo esse dinheiro extra para melhorar a atenção
básica à população”, afirma Carlos Gadelha, secretário de Ciência,
Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. “Em vez disso, pedimos dinheiro para bancar medicamentos que podem
ser danosos ao cidadão que solicitou um remédio que não foi aprovado pela
Anvisa. Isso é uma irracionalidade.”
Em outubro
de 2011, a presidente Dilma Rousseff regulamentou a Lei no 12.401, que
estabelece parâmetros para a inclusão de medicamentos no sistema público. Ela
determina que o SUS não deve fornecer medicamentos, produtos ou procedimentos
clínicos e cirúrgicos experimentais sem registro na Anvisa. É possível que a
lei sirva de parâmetro técnico aos juízes. Muitos advogados, porém, acreditam
que sempre será possível argumentar com base na garantia constitucional e,
dessa forma, garantir o fornecimento do remédio pelo sistema público.
Além de
destinar mais recursos à saúde, o Brasil precisa definir explicitamente o que
vai e o que não vai financiar. A regra deve ser clara e válida para todos – indistintamente.
É uma decisão dura e impopular, mas é a melhor forma de amenizar a
desigualdade.
No cenário
atual, Rafael é um felizardo. “Melhorei
100% com esse remédio. Parece que foi instantâneo. Logo na primeira infusão,
fiquei cheio de pique.” Nas missas de domingo, ele agradece. Toca guitarra
enquanto a mãe canta. Com 1,80 metro e 103 quilos, risonho e falante, não
poderia parecer mais saudável.
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