Na sede do antigo DOI-Codi, em
São Paulo, dezenas de entidades 'descomemoram' 1964, criticam militares e
voltam a cobrar 'punição exemplar de torturadores, mandantes e financiadores'
Alguns presos políticos voltaram ao local hoje (31), em ato também interpretado como uma revisão histórica no cinquentenário do golpe |
Um dos mais
emblemáticos centros de repressão no período da ditadura foi o palco escolhido
para a “descomemoração” dos 50 anos do golpe civil-militar. Durante toda a
manhã de hoje (31), mais de mil pessoas ocuparam o pátio externo do atual 36º
Distrito Policial, entre os bairros da Vila Mariana e do Paraíso, zona sul de
São Paulo, próximo da sede do II Exército. Ali funcionava o DOI-Codi, por onde
passaram até 8 mil presos políticos e morreram 50, segundo os cálculos de
entidades de direitos humanos. Alguns voltaram ao local hoje, em ato também
interpretado como uma revisão histórica no cinquentenário do golpe.
Uma lona foi erguida no pátio, um
palco foi montado e um telão instalado na área símbolo da ditadura. Para a
advogada Rosa Cardoso, integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a
escolha do local ajuda a transmitir a “ideia de que sofremos, fomos
desfigurados, fomos traumatizados, mas sobrevivemos”. Segundo ela, ali
funcionava um “centro de referência de extermínio”, onde se desenvolveu a
“tecnologia da repressão”.
Esteve lá, por exemplo, o
ex-preso Anivaldo Padilha, antigo militante da Ação Popular, que contou estar
retornando pela primeira vez ao local desde 1970. As cenas de tortura
"voltaram", mas ele destacou a importância do que chamou de retomada.
Ao lado dele, seu filho Alexandre, ex-ministro e pré-candidato pelo PT ao governo
estadual.
Também estava ali Audálio Dantas,
ex-deputado e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, entidade
que dirigia quando foi morto o então diretor de Jornalismo da TV Cultura,
Vladimir Herzog, em 1975. Morto no mesmo local onde foi realizado o ato de
hoje. “A partir desse episódio, a consciência nacional começou a despertar”,
diz Audálio. “Conseguimos enormes avanços”, acrescenta, citando o movimento
pelas eleições diretas, a Lei da Anistia (mesmo questionada) e a Constituição de
1988, que ele destaca como “a maior conquista do povo brasileiro”.
Censura
Não existe mais censura, afirma Audálio, com a ressalva que os grandes veículos de comunicação continuam a praticá-la por conta própria. Para ele, falta uma democracia “que seja de fato um instrumento ao alcance de todos”. A tortura segue sendo praticada em delegacias. “E temos uma polícia que é contra o povo, em vez de defender o povo, principalmente o mais humilde.”
Criado no período mais violento
da ditadura, no final de 1970, o Coro Luther King se apresentou com músicas
que, contam alguns militantes, eram cantadas na prisão: Suíte dos Pescadores
(Dorival Caymmi), Viola Enluarada (dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle),
Bella Ciao, canção da resistência italiana durante a 2ª Guerra Mundial, e o
hino da Internacional Socialista.
Em seguida, é transmitido um
áudio com o ex-deputado Rubens Paiva, gravado pela rádio Nacional na madrugada
de 1º de abril de 1964. No depoimento, ele presta solidariedade ao ainda
presidente João Goulart e às chamadas reformas de base, medidas que, segundo
ele, "levarão à nossa emancipação político-econômica definitiva". Era
um "momento decisivo", alertou o deputado trabalhista, que foi preso
em 1971 e nunca mais foi visto. A audição emociona Maria Lúcia Paiva Mesquita,
irmã de Rubens.
Muitos cobram providências para
punir agentes do Estado envolvidos com torturas. A ex-presa política Amélia
Telles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, diz, por exemplo,
que o governo ainda tem "mãos sujas de sangue".
Assassinato
O deputado estadual Adriano Diogo
(PT), presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo,
que leva justamente o nome de Rubens Paiva, recorda o momento de sua prisão,
naquele mesmo local, em 1973. "Cheguei aqui neste pátio. O major veio me
pegar aqui, neste pedacinho... Estavam lavando a cela-forte, tinham acabado de
matar o Alexandre (Vannuchi). Ele falou: 'Acabei de matar aquele filho da puta,
mandei ele para a Vanguarda Popular Celestial. Vou te mandar pra lá
também'", recorda. A sigla era referência à VPR, Vanguarda Popular
Revolucionária, onde militava o então estudante da USP. "Se eu disser que
que estou aqui à vontade, que estou tranquilo, que perdi totalmente o medo, o
trauma... Tem noites que eu passo mal, que estou agitado", afirma o
deputado, que passou 90 dias na solitária. "Fiquei quase louco."
Segundo ele, em um relatório
final de atividades da comissão bastaria escrever "revogue-se a Lei da
Anistia". Com isso, acredita, o Brasil iniciaria um novo patamar
civilizatório. "A grande contribuição desse movimento (referindo-se às
várias comissões da verdade) é a perda do medo." Sobre o ato no antigo
DOI-Codi, o deputado afirma que a manifestação não pode ser vista como apenas
um pedido de transformação do local em um centro de memória. "Muito mais
importante que fazer o memorial é devolver os arquivos do IML. Nunca ganhamos
uma foto, um laudo dos legistas."
O prédio onde funciona hoje o 36º
DP foi tombado no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Depois disso, a
Assembleia Legislativa revogou o Decreto nº 13.757, de 1979, pelo qual o
governador Paulo Maluf autorizou o uso do local pelo Exército, que na prática
já era usado como local de torturas desde o final dos anos 1960. Entidades
defendem que a atual delegacia se transforme em um centro de memória, assim
como aconteceu com o antigo Dops, que hoje abriga o Memorial da Resistência. O
prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), que passou rapidamente pelo local,
se manifestou favoravelmente à reivindicação.
O advogado Airton Soares,
ex-deputado, também critica a omissão dos militares atuais em relação à entrega
de documentos. "Eles não têm nada a ver como o que foi feito e encobertam
os assassinos", afirmou. Para ele, o ato de hoje deveria ter sido feito há
muitos anos, logo depois da anistia, em 1979, mas havia "uma necessidade
de reestruturar a sociedade civil e democrática", até para que ela se
protegesse contra novas investidas autoritárias.
Contragolpe?
Soares também rebate uma versão
de que 1964 teria representado um "contragolpe" contra uma
"ditadura comunista" em formação. "Ainda há alguns historiadores
que colocam a ação dos militares como um contragolpe. Mas foi um movimento do
que havia de mais atrasado para evitar as reformas de base." Soares lembra
ainda que o ministro da Fazenda de Jango era Carvalho Pinto – um conservador
que não podia ser chamado exatamente de comunista. E não vê riscos
institucionais. "O que unia os militares era o anticomunismo."
O procurador da República Marlon
Weichert considera "ficção" a teoria de um golpe de esquerda,
argumentação usada pelos defensores do golpe. "Basta estudar um pouco de
história. Tudo bem que havia o contexto da Guerra Fria, mas me parece muito
claro que era uma tentativa de desestabilizar", observou. Ele inclui
movimentos como o de hoje também como consequência de iniciativas de
responsabilizar agentes do Estado, como tem feito o Ministério da Público
Federal, ainda que os pedidos venham sendo rejeitados pelo Judiciário.
"Isso interditou a pauta, apesar da insensibilidade da Justiça." E
considera "por si só impressionante" a realização de um ato no antigo
DOI-Codi. "Estamos em um momento de rediscussão do papel do Estado. São
sinais de que a democracia está conseguindo penetrar nesses últimos resíduos
autoritários."
Presidente da Comissão Justiça e
Paz, da Arquidiocese de São Paulo, Antonio Funari Filho, ressaltou o caráter
simbólico do evento, sem ver base de comparação com a reedição da Marcha da
Família, como ocorreu recentemente. "A marcha de 64 foi patrocinada pelo
governo estadual, pelo Ademar de Barros, com pessoas assustadas com a 'onda
vermelha'. Havia o contexto da Guerra Fria. Hoje, não faz mais sentido",
afirma.
Em uma visão histórica, Funari
observa que alguns segmentos sociais apoiaram o golpe por considerá-lo
temporário, de certa forma. "Os setores liberais, que se denominavam
democráticos, por incrível que pareça, achavam que seria uma medida
profilática." Em 1965, ainda nessa linha de pensamento, seria realizada a
eleição presidencial prevista, mas sem nomes como os dos governadores Leonel
Brizola ou Miguel Arraes. Nem mesmo o ex-presidente Juscelino Kubitschek, diz
Funari, na época secretário regional da União Nacional dos Estudantes (UNE) e
também da estadual (UEE), preso dias após o golpe. "Meu crime foi fazer
alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire", lembra. A Comissão
Justiça e Paz está à frente, agora, de uma campanha contra a criminalização dos
movimentos sociais.
Adriano Diogo, Amelinha Teles e
Ivan Seixas, da Comissão estadual da Verdade e da Comissão de Familiares de
Mortos e Desaparecidos Políticos, leram um manifesto no qual pedem a
identificação e punição "exemplar" de torturadores, mandantes e financiadores.
"O terrorismo de Estado, executado pela ditadura, teve o comando do alto
escalão das Forças Armadas e foi financiado diretamente por muitos empresários
e suas entidades, que se beneficiaram com a ditadura militar e ainda hoje estão
na elite econômica do país e na estrutura do Estado", afirmam as entidades
signatárias. Também citam "as frequentes visitas" de representantes
da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e do consulado dos Estados
Unidos ao prédio do Dops, o que não deixaria dúvida sobre "os interesses e
envolvimento do empresariado nacional e estrangeiro na continuidade da ditadura
brasileira".
Foram citados nomes de 56 pessoas
assassinadas no antigo DOI-Codi, aos gritos de "presente". Às menções
de oficiais seguia-se a acusação de "assassino". Encenações teatrais
recriaram cenas de tortura.
Estaria a esquerda reescrevendo a
história, como criticam antigos militares? "É verdade. Eles estão
certos", responde Adriano Diogo. "Nós estamos reinventando a história
da escravidão, do Paraguai, porque eles inventaram a mentira. Para a gente não
contar a história deles. Se pelo menos isso a gente fizer, já está bom. A
Justiça de Transição fala em memória, verdade e justiça. Nós só estamos
preservando a memória, não chegamos nem na verdade."
Portal RBA
Um comentário:
Esse foi um dos piores masacres
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