A resistência de uma pequena cidade de Pernambuco
1964: Professora, telegrafista e até o delegado de Vitória de Santo Antão entraram na lista de 21 acusados de subversão
Festa militar em Vitória de Santo Antão, em 1974: resistência foi sufocada por Exército e polícia. (Foto: Acervo Municipal - 3/8/1974) |
A professora foi para a rua liderar o levante contra o golpe. Os trabalhadores da estrada de ferro cruzaram os braços. O telegrafista disse para os primeiros soldados com carabinas nas mãos que não tinha condições de mandar mensagens. O delegado não aceitou as ordens do Exército. Diante da agitação, o comércio fechou as portas. A rádio AM foi tomada por defensores do presidente João Goulart e, pelo microfone, conclamou os ouvintes a resistir. O sindicalista resistiu e foi fuzilado num canavial. O corpo dele virou repasto de aves de rapina. Os militares forjaram um suicídio que indignou a família.
A crônica com tintas surreais dos primeiros dias de abril de 1964 em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, na época com 30 mil moradores - hoje sua população passa de 100 mil -, mostra que, na história do Brasil contada a partir do interior, o povo não assistiu, mais uma vez, bestializado, e os generais não esperaram o AI-5, quatro anos depois, para dar início à barbárie.
O delegado Edvaldo Rodrigues Cavalcanti entrou na lista de 21 acusados de subversão que teriam resistido ao golpe na cidade da Zona da Mata pernambucana. Foi expulso da Polícia Militar. Documento do Conselho Especial de Justiça do Exército, de dezembro de 1969, obtido pelo Estado, destaca que o ex-tenente "procurou sublevar o destacamento policial e até camponeses adestrados para uma reação ao movimento revolucionário". Esse personagem desconhecido afirmou, em sua defesa, que tinha orgulho por jamais permitir que senhores de engenho colocassem as mãos em seu ombro e dissessem: "Meu delegado".
A paraibana Maria Celeste Vidal Bastos, na época com 37 anos, e o sindicalista pernambucano Luiz Serafim de Santana, 36, foram outros líderes do levante contra o golpe citados no documento. Na manhã do dia 1o de abril, eles convocaram trabalhadores dos engenhos para o levante. Centenas deles foram para a cidade com foices, enxadas e paus. Eles ocuparam a Rádio Jurema. O comerciante José Lyra, 87 anos, lembra da passeata com pessoas erguendo varas com ossos amarrados para reclamar dos mortos nos canaviais. "O Exército e a polícia apareceram. Foi um Deus nos acuda", relata.
Professora Maria Celeste Vidal Bastos |
Com o acirramento das disputas entre senhores de engenho e o grupo de Maria Celeste, a Igreja Católica, meses antes do golpe militar, afastou o padre Manoel Monteiro Neto, vigário da paróquia desde 1958. Ele estava envolvido no movimento camponês. Entrou no lugar dele o padre Renato da Cunha Cavalcanti, filho de senhor de engenho. Hoje com 82 anos, padre Renato permanece na paróquia de Vitória de Santo Antão e se recusa a entrar em divergências. Em entrevista ao Estado, reclama da primeira pergunta sobre "o dia do golpe". "Já começou mal a entrevista. Uns dizem que foi revolução", adverte. "O padre Manoel Monteiro Neto estava no meio das Ligas Camponesas. Por isso, o bispo me mandou para cá."
Maria Celeste e Luiz Serafim decidiram fugir na noite de 2 de abril. Na manhã do dia 4, Vitória de Santo Antão estava cercada pelos militares. O levante contra o golpe durou 36 horas. A ditadura mataria em outras cidades da região da cana seis lideranças rurais ao longo de 1964. Não se sabe o número de trabalhadores mortos no período na área pela rede de repressão. "Essas mortes foram praticadas muitas vezes por milícias de policiais à paisana, e comandadas por usineiros", destaca Amparo Araújo, secretária de Direitos Humanos do Recife.
Em 21 anos de regime, o Exército só faria operações de guerra na zona rural, como as ações contra a guerrilha do Araguaia, o Movimento de Libertação Popular (Molipo) e a operação Pajuçara, de caça ao capitão Carlos Lamarca. Era no campo que o regime manteria os mais influentes agentes do Centro de Informação do Exército, motor da repressão. As polícias se encarregariam, geralmente, de controlar as guerrilhas urbanas.
Estudantes foram primeiros mortos no recife.
Ivan Rocha Aguiar morto do dia 01 de Abril de 1964 |
Naquele 1º de abril de 1964, Recife amanheceu com tropas do Exército nas ruas. Ivan saiu cedo de casa para participar de uma passeata de apoio ao governador Miguel Arraes, que estava cercado no Palácio do Campo das Princesas. Um irmão, o soldado Danúbio, 20 anos, ficou preocupado e foi atrás de Ivan. Encontrou-o perto da Praça da Independência. Eram 16 horas. "Não vai aí na frente, não, porque a turma está muito agitada e o Exército pode atacar", advertiu Danúbio. "Não vou deixar os companheiros", respondeu Ivan, que pegou uma bandeira de um colega e seguiu para a praça.
Minutos depois, a 300 metros, começaram os tiros. Estudantes só tinham cocos e pedras nas mãos. "Uma tropa atirou com metralhadoras", lembra Danúbio, que não viu mais o irmão. Horas depois, soube que dois estudantes tinham sido baleados. Um deles era Jonas José de Albuquerque e o outro, Ivan. "Havia ali polícia e Exército, não sei de onde partiram os tiros." Segundo testemunhas, um colega de Ivan tentou socorrê-lo. "Não aguento, Florêncio, estou cansado", teria dito Ivan. O amigo correu. Uma viatura estacionou. "Disseram-me que ele estava ainda com vida quando entrou no camburão", afirma Danúbio.
Informações do Estadão
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