Em julho de 1986, Cazuza escreveu
uma carta para uma de suas paixões, a atriz Denise Dumont, que tentava a
carreira em Nova Iorque. “Comprar uma fazenda e fazer filhos talvez fosse uma
maneira de ficar na Terra para sempre. Porque discos arranham e quebram”,
refletiu. Naquela altura, ele ainda não sabia da AIDS que o levaria a óbito
quatro anos mais tarde.
Devido a febres altas e recorrentes, havia feito um
exame para detectar o HIV, mas o resultado fora negativo. Deduziu que o seu
problema era estar sozinho. “Eu fiz 28 anos e descobri que sou um cara
solitário sem vocação para solidão. Ultimamente, passo mal quando não tenho
ninguém perto”, confidenciou.
A solidão sempre acompanhou o
filho de Lucinha e João Araújo. Há 55 anos, no dia 4 de abril de 1958, ele veio
ao mundo e, ariano, tratou logo de ser único. Os planos do casal eram ter cinco
filhos, mas devido a complicações no parto de Agenor de Araújo Neto (Cazuza
desde a barriga da mãe), Lucinha não pôde mais engravidar.
O músico, então,
cresceu sem irmãos e deu trabalho por todos eles. Foi expulso da escola de
elite por fumar maconha no corredor, constantemente necessitava da ajuda do pai
para livrá-lo de prisões decorrentes de sua vida abusiva, escrevia poemas de
amor para meninos.
Era sozinho também em seu
universo. “(Cazuza) tinha uns 15 anos quando percebi que ele tinha uma cabeça
diferente da minha, do pai, da humanidade inteira. Quando notei, levei um
susto. [...] Parei, refleti e entendi que era melhor parar de bater a cabeça e
entender a situação. Ainda bem que eu tive essa serenidade. Porque ele era uma
pessoa espetacular”, disse Lucinha em entrevista à Revista TMP, de agosto de
2003.
Foi ainda solo que ele preferiu
seguir quando o grupo Barão Vermelho estava no auge. Cazuza entrou para a banda
de rock por indicação de Leo Jaime, em 1981. Embora convivesse com a música
desde criança (o pai era dono da Som Livre), havia acabado de se descobrir
cantor, em uma peça do grupo de teatro que integrava. A estreia do Barão
aconteceu em um condomínio na barra na Tijuca. Cazuza estava de porre, com a
braguilha aberta, mas agradou.
Um dia, Ezequiel Neves ouviu uma
fita de uma apresentação do Barão e achou incrível. Levou para Guto Graça Mello
e os dois lutaram para convencer o pai de Cazuza a lançar. Gravado em dois
dias, “Barão Vermelho” (1982) não estourou, mas Caetano Veloso incluiu “Todo
amor que houver nessa vida” em seu show. De 1983, “Barão Vermelho 2” trouxe
“Pro dia nascer feliz”, regravada por Ney Matogrosso. Finalmente, o grupo foi
chamado para compor a trilha sonora do longa-metragem “Bete Balanço”, de Lael
Rodrigues, datado de 1984. “Maior abandonado”, lançado na crista do sucesso do
filme, conquistou disco de ouro.
Durante os ensaios para o quarto
álbum, Cazuza anunciou sua saída do grupo - ele sentia falta de cantar samba,
bossa e MPB; já os amigos não queriam largar o rock. O poeta estava, mais uma
vez, isolado. Brincou que era estrela demais para dividir as atenções com uma
banda. “Eu devia ganhar para ser carente profissional”, lembrou. E se debruçou
em “Exagerado”, de 1985.
Em seguida, veio “Só se for a
dois”. Ambos agradaram crítica e público e mostraram um Cazuza mais romântico e
sarcástico - “por isso, triste”, diria ele a Denise na missiva supracitada.
Em 1986, Cazuza percebia que algo
não ia bem. “Tenho sentido muito medo. Medo de voar, de entrar no palco, de
amar, de morrer e de ser feliz. Medo de fazer análise e não ter mais problemas
e perder a inspiração”, escreveu à amiga.
O medo ele afastou com crises de
ódio depois que foi diagnosticado com AIDS. Mas sobre a inspiração ele estava
certo. Foi ali, com a cabeça a mil, entre internações em Boston, maços de
cigarro e copos de uísque, que ele compôs suas músicas mais profundas. Elas
deram origem a dois trabalhos. “Ideologia” (1988) e “Burguesia” (1989). Este
último, é duplo - para os amigos era compor que mantia Cazuza vivo.
Uma das últimas composições
registradas por ele foi “Azul e Amarelo”, em parceria com o amigo Lobão. Na
música, ele pega versos emprestados de Cartola - um de seus grandes ídolos, que
também se chamava Agenor. “Tô pronto para ir ao teu encontro/ Mas não quero,
não vou, não quero”, cantava, decidido por viver. As letras de seus últimos
anos de vida abordam bastante a AIDS. Desde que ele decidiu revelar ao mundo a
sua doença - após uma conversa com a jornalista Marília Gabriela, que disse que
esconder não condizia com sua personalidade de roqueiro desbocado - nunca mais
deixou de falar dela.
O último show de Cazuza foi no
Recife, em 24 de janeiro de 1989. Na apresentação, ele brigou com a plateia,
sussurrou músicas no lugar de cantá-las. Repetia uma atitude agressiva que já
vinha demonstrando em espetáculos anteriores, em que tirou as calças, estando
sem nada por baixo, e gritou palavrões para os fãs. Mais tarde, declarou que
havia feito aquilo de propósito - não queria ser tão amado nem que as pessoas
sentissem pena dele. Definitivamente, a revista Veja não sentiu.
Em abril daquele ano, ela
publicou a fatídica capa em que Cazuza fala sobre a AIDS - muitos comentam que
o cantor piorou consideravelmente após ver no que resultou a entrevista dada a
Angela Abreu e Alessandro Porro. Na publicação, além de alardear que o astro
“agonizava em público”, afirma-se: “Cazuza não é um gênio da música. É até
discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está ao momento
presente”. O erro não poderia ser maior. Após 55 anos do seu nascimento e 23 de
sua morte (no dia 7 de julho de 1990), ele continua lembrado na Terra - sem a
necessidade de filhos ou fazendas.
Folha de Pernambuco
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