Da Revista Época
A história
do rapaz que recebe do SUS o tratamento mais caro do mundo revela um dos
maiores desafios do Brasil: resolver o conflito entre o direito individual e o
direito coletivo à saúde.
imagem: revistaepoca.globo.com |
CAPÍTULO 2
O QUE O CASO DE RAFAEL
ENSINA SOBRE A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA?
Ninguém
quer a morte de Rafael. Nem de qualquer outro doente que recorre à Justiça para
conseguir outros medicamentos caríssimos. Mas, quando são obrigados a fornecer
remédios caros da noite para o dia (ao preço que o fabricante se dispõe a
vender), os gestores do orçamento público da saúde tiram o dinheiro de outro
lugar.
Com isso,
milhares (ou milhões) de cidadãos perdem. A verba destinada à compra de um
frasco de Soliris seria suficiente para garantir milhares de doses de
anti-hipertensivos e de outros medicamentos baratos que atingem a maior parte
da população. Sem interrupções. É preciso reconhecer que priorizar o direito
individual em detrimento do direito coletivo tem consequências sobre a saúde
pública.
Se os
pacientes ficarem sem esses medicamentos, o resultado pode ser uma trombose, um
AVC, um infarto – todas as ameaças que o Estado procura evitar ao fornecê-los a
Rafael. Para salvar uma vida, pode abrir mão de muitas outras.
“Os recursos para cumprir as
demandas judiciais saem do orçamento público para ações prioritárias, como a
prevenção básica de problemas de saúde entre os mais pobres”, diz André Medici, economista sênior
do Banco Mundial, em Washington. “As
demandas judiciais aumentam a iniquidade do sistema de saúde e diminuem a
qualidade de vida dos que detêm menos recursos.”
O maior
desafio dos administradores públicos é preservar o direito do doente ao melhor
tratamento sem que o Estado se torne perdulário. É preciso lembrar que a saúde
no Brasil é subfinanciada. O país aplica em saúde cerca de 8,5% do PIB
(considerando os gastos públicos e privados). É pouco. A França investe 11%. O
México gasta menos que o Brasil (5,9%), mas tem taxas de mortalidade infantil e
materna mais baixas, dois parâmetros importantes para avaliar a qualidade da
assistência à saúde prestada por um país. O Brasil gasta pouco e gasta mal.
Diante das verbas limitadas, um bom gestor é aquele que evita o desperdício de
recursos ou o investimento em tratamentos inadequados. A pressão crescente das
ordens judiciais impede que isso aconteça.
Em 2005, o
Ministério da Saúde foi citado em 387 ações. Gastou R$ 2,4 milhões para atender
essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram 7.200 ações. A conta disparou
para R$ 243 milhões. As ações contra o governo federal são uma pequena parte do
problema. Como todas as esferas do Poder Público (federação, Estados e
municípios) são corresponsáveis pelo financiamento da saúde, a maioria dos
pacientes processa só o secretário municipal, só o estadual ou ambos.
Segundo os
advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados são os gestores das
esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que mais gastou com essas ações
em 2010. As despesas chegaram a R$ 700 milhões para atender 25 mil cidadãos.
Isso é quase metade do orçamento do governo estadual para a distribuição
regular de medicamentos (R$ 1,5 bilhão) a toda a população paulista. Os gastos
com as ações judiciais crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo por mês”, diz o secretário
estadual Giovanni Guido Cerri.
As ações
são baseadas no Artigo 196 da Constituição, segundo o qual a saúde é direito de
todos e dever do Estado. Nem todos os juízes, porém, interpretam esse artigo
como uma obrigação explícita de que o Poder Público deve prover ao paciente
todo e qualquer tratamento solicitado. Muitos, no entanto, dão sentenças
favoráveis ao doente. Quando isso acontece, o gestor citado é obrigado a
fornecer o medicamento rapidamente. Se ignorar a determinação, pode ir para a
cadeia.
O Brasil
dispõe de uma relação de remédios regularmente distribuídos no SUS. Ela inclui
as drogas necessárias para tratar as doenças que afetam a maioria da população.
Além dela, existe uma lista de medicamentos excepcionais – em geral, de alto
custo. São drogas novas, criadas para tratar doenças raras ou cada vez mais
comuns, como o câncer.
As
associações de pacientes reclamam que o governo demora a incluir nas listas
drogas caras, mas de benefício inegável. Por isso, defendem ações judiciais
como uma forma legítima de pressão. “As
ações estão crescendo de forma desesperadora para os governos, mas elas os
obrigam a arrumar verbas. Se eles arranjam dinheiro para outras coisas, por que
não podem conseguir para remédios?”, afirma Fernanda Tavares Gimenez,
advogada de Rafael.
Não há
dúvida de que alguns pedidos de pacientes são justos e fundamentados. É verdade
também que o SUS deveria ser mais ágil na atualização das listas. Muitos
juízes, porém, não têm condição técnica de avaliar se um medicamento importado
é melhor que o tratamento existente. Nem se sua eficácia foi comprovada. Nem se
é capaz de provocar danos irreversíveis ao doente, além de rombos
orçamentários.
A expressão
“cada cabeça uma setença” se aplica
perfeitamente ao caso dos pedidos de medicamentos. O entendimento sobre o
assunto varia entre os magistrados. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF)
realizou uma série de audiências públicas sobre a questão – e a controvérsia
persiste. No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido de uma
paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já oferece um
tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o fornecimento desse
remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento da saúde do Estado,
prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.
No Ceará, o
entendimento foi outro. O Estado foi obrigado a fornecer o Soliris a quatro
pacientes. Por enquanto, o governo comprou a droga para dois deles. “O dinheiro necessário para atender os
quatro corresponde a 67% do valor repassado pelo governo estadual para a compra
de medicamentos básicos do município de Fortaleza inteiro”, afirma Einstein
Nascimento, supervisor do departamento que controla os medicamentos de alto
custo da Secretaria da Saúde do Ceará. “Esse
caso ilustra muito bem o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde
pública.”
Nos
pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de Buritama,
uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O orçamento do
município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por ano. No ano
passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento de demandas
judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou – uma cirurgia de
implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson. Preço: R$ 108 mil. “Todos os pacientes que entraram na Justiça
ganharam a causa. E o Judiciário nem mandou o Estado compartilhar os gastos conosco”,
diz Nancy Ferreira da Silva Cunha, secretária de Saúde de Buritama. “Essas ações estão acabando com os pequenos
municípios.”
Cada nova
ação que chega à Justiça torna explícito o conflito entre o direito individual
e o direito coletivo à saúde. Os que administram orçamentos públicos parecem
ter a resposta na ponta da língua. “A
saúde pública tem de priorizar o interesse coletivo. Os interesses individuais
devem ser bancados pelas famílias. É como o transporte público. O transporte é
o mesmo para todos. Quem quiser andar de carro importado tem de pagar esse
luxo”, diz Cerri, secretário estadual de São Paulo.
Além dos
pacientes, quem mais se beneficia da judicialização são as empresas que
fabricam os medicamentos. ÉPOCA procurou a Alexion, empresa americana que
fabrica o Soliris. Nenhum representante aceitou dar entrevista. Nem no Brasil
nem nos Estados Unidos. Em nota preparada pela assessoria de imprensa, a
empresa afirmou não comentar suas atividades no Brasil nem o número de
brasileiros que atualmente recebem o medicamento.
As ordens
judiciais já não estão restritas apenas ao fornecimento de remédios. Além dos
gastos com drogas que não estavam previstos no planejamento, em 2011 os juízes
obrigaram o governo paulista a fornecer outros itens que consumiram mais R$ 80
milhões. Não são medicamentos, mas os juízes aceitaram a argumentação de que
seriam indispensáveis à saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder
Público. Parece lista de supermercado:
sabão de coco em pó, escova de dente, antisséptico bucal, xampu anticaspa,
pilhas, copos descartáveis, chupetas, papel toalha, creme fixador de
dentaduras, fraldas geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite,
fubá, amido de milho, farinha láctea...
Os
administradores dos recursos da saúde tentam basear suas decisões em avaliações
técnicas do custo e do benefício dos medicamentos. Os orçamentos para comprar
remédios estão cada vez mais ameaçados pelos preços altíssimos das novas
drogas. Ele é justificado, segundo a indústria farmacêutica, pelo investimento
de longos anos em pesquisa refinada e pelo universo relativamente reduzido de
consumidores, no caso das doenças raras. Grande parte dos custos nesse setor
também está relacionada a investimentos vultosos de marketing para promover as
novas marcas.
Os preços
elevados combinados ao aumento da parcela da população que sofre de doenças
crônicas ameaçam o atendimento à saúde até mesmo nas nações mais ricas. “Nos países desenvolvidos, o tratamento do
câncer transformou-se numa cultura de excessos”, escreveu o professor
Richard Sullivan numa edição da revista Lancet Oncology, publicada em setembro
de 2011. “Diagnosticamos demais, tratamos
demais e prometemos demais.”
Lá, é cada vez mais frequente a pergunta
cruel: é justo que o Estado gaste
centenas de milhares de dólares para prolongar a vida de um doente de câncer em
apenas dois meses?
Para ler o capítulo 1 desta matéria, clique AQUI:
Nenhum comentário:
Postar um comentário