Do
Blog do Josias
Levado
ao ar na propaganda eleitoral de 2010, o então candidato à reeleição Demóstenes
Torres jacta-se de ter relatado na Comissão de Justiça do Senado a Lei da Ficha
Limpa. Durante a campanha, trombeteou a biografia higienizada como uma das
marcas que o diferenciavam dos políticos convencionais.
Ao
converter-se em senador de dois gumes, defensor e transgressor da ética,
Demóstenes (DEM-GO) virou alvo do feitiço que, na pele de feiticeiro dos bons
costumes, ajudou a por em pé. Sujeita-se agora aos rigores da Lei Complementar
135, nome de batismo da Lei da Ficha Limpa.
Prevê
que políticos cujos mandatos sejam cassados ficam inelegíveis. Na letra ‘k’ do
artigo 1o, anota que a inelegibilidade alcança inclusive aqueles que
renunciarem aos respectivos mandatos para fugir da cassação.
Draconiano,
o texto que a Câmara aprovou e que Demóstenes manteve no Senado eliminou uma
brecha. Lacrou-se a fenda que permitia a congressistas enrolados salvar os
direitos políticos fugindo pelo atalho da renúncia antes da abertura de
processos formais nos conselhos de ética da Câmara e do Senado.
Agora,
basta “o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura
de processo” para que os violadores do decoro parlamentar sejam punidos. No
caso de Demóstenes, a engrenagem prevista na lei já foi acionada.
Na
semana passada, o PSOL protocolou na Mesa diretora do Senado o pedido para que
o senador seja submetido a julgamento político no Conselho de Ética. Significa
dizer que, ainda que renuncie, Demóstenes ficará inelegível.
Há
mais e pior: o prazo da inelegibilidade, fixado na lei em oito anos, passa a
contar a partir do término do mandato. Demóstenes reelegeu-se senador em 2010.
Iniciado em 2011, seu mandato é de oito anos. Expira em 2019.
Ou
seja: se for cassado pelos colegas ou se renunciar, Demóstenes não poderá
disputar eleições até 2027. Amargará um jejum de urnas de 15 arrastados anos.
Na prática, uma sentença de morte política.
O
voto de Demóstenes foi apresentado aos membros da Comissão de Justiça em 19 de
maio de 2010. Para evitar que o projeto tivesse de retornar à Câmara, propôs
que fosse mantido o texto aprovado pelos deputados.
“As
determinações são extremamente rigorosas”, disse na época um Demóstenes que já
frequentava os grampos da Polícia Federal na condição de ex-Demóstenes. O
rigor, alegou ele, era necessário para retirar de cena “políticos indecentes,
malandros e corruptos”.
Aprovado
a toque de caixa na comissão de Justiça e no plenário do Senado, o texto foi
sancionado por Lula em 4 de junho de 2010. O TSE validou-o já para as eleições
daquele ano. Posteriormente, o STF dediciu que não valeu para 2010.
Instado
a manifestar-se sobre o futuro da lei, o Supremo decidiu, em 16 de fevereiro de
2012, que a Ficha Limpa é constitucional e vale para as próximas eleições. A
começar pela disputa municipal deste ano.
O
julgamento do Supremo havia começado em 1o de dezembro de 2011. Atuou como
relator o ministro Luiz Fux. Um pedido de vista do colega Joaquim Barbosa
adiara o veredicto.
Na
retomada do julgamento, em fevereiro, Fux reviu um pedaço do seu voto. Havia
considerado inconstitucional a letra ‘k’ do artigo 1º da lei, justamente aquele
trecho que torna inelegíveis os políticos que renunciam para fugir da cassação.
Revisto
o voto, Fux sustentou que também esse naco da lei deveria ser validado pelo
STF. A Ficha Limpa prevaleceu no Supremo por sete votos contra quatro. O debate
sobre a letra ‘k’ serviu para tornar incontroverso o dispositivo que, agora, é
a principal arma contra Demóstenes.
Feiticeiro
de si mesmo, o senador não pode nem mesmo praguejar o feitiço. Afora o fato de
ter relatado a Ficha Limpa antes de propagandear o feito na tevê e nos
palanques, Demóstenes ainda imprimiu suas digitais num livro festivo.
Escreveu
o prefácio da obra ‘Ficha Limpa: A Vitória da Sociedade’. O volume foi às
prateleiras em 2010, nas pegadas da aprovação da lei. Editou-o a OAB. O texto é
de Ophir Cavalcante, presidente da entidade, e de Marcus Vinícius Furtado
Coelho, conselheiro da Ordem.
“O
Espírito da Lei na Alma do Povo”, eis o título que Demóstemes deu ao seu
prefácio. No texto, apresenta a Ficha Limpa como uma conquista do país. A certa
altura, anota, premonitório:
“Por
causa da nova lei, a nação vai conquistar muito, pois o volume de recursos para
beneficiar a população é inversamente proporcional ao número de bandidos na
vida pública.”
Quando
a catarata de grampos começou a jorrar diálogos tóxicos sobre sua biografia,
Demóstenes escalou a tribuna do Senado. Deu-se em 6 de março. Ele reconheceu
que estava atado a Carlinhos Cachoeira por laços de amizade.
Admitiu
que o amigo o presenteara com uma geladeira e um fogão importados. Coisa de R$
30 mil. Mas jurou que aquele Demóstenes impoluto, notabilizado pelas
imprecações contra a bandidagem, continuava hígido.
Demóstenes
negou enfaticamente que estivesse envolvido com os negócios ilícitos do
contraventor. Exigiu ser investigado. Soou tão categórico que recebeu a
solidariedade de 44 apartes. Não se ouviu no plenário uma única manifestação de
dúvida.
Decorridos
28 dias, a atmosfera no Senado é de velório. As mais de quatro dezenas de vozes
que ampararam Demóstenes passaram a enxergar nele uma espécie de Silvério da
confiança alheia.
Primeiro
a solidarizar-se com aquele Demóstenes de 6 de março, Eduardo Suplicy (PT-SP)
se reposicionou em cena. Nesta segunda (2), cobrou da tribuna novas explicações
do colega.
Ecoou
Suplicy a senadora Ana Amélia (PP-RS), que também estendera a mão ao Demóstenes
de três semanas atrás. Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), um socialista que aprendeu
a respeitar o colega conservador do DEM, cobra pressa na recomposição do
comando da Comissão de Ética, sem presidente.
Nas
próximas horas, vai à tribuna Pedro Taques (PDT-MT). Egresso do Ministério
Público Federal, devotava pelo promotor licenciado Demóstenes um respeito quase
reverencial. Hoje, Taques receia que as transgressões do amigo terminem por
tisnar todos os políticos que, como ele, empunham a bandeira da ética.
Lançado
ao mar pelo proprio DEM, que abriu contra ele um processo de expulsão,
Demóstenes tornou-se uma cabeça em litígio com o pescoço. Para que seu mandato
seja passado na lâmina, basta que 41 dos 81 senadores votem a favor do escalpo.
No
início de março, os senadores olhavam para o Demóstenes que mudou de hábitos
com olhos de incredulidade. Não julgavam possível que ele tivesse aderido ao
que antes combatia. Hoje, cada um dos 44 senadores que levaram a mão ao fogo
por um insuspeitado ex-Demóstenes enxerga a cara de um bobo no espelho.
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