sábado, 14 de abril de 2012

COM A BOCA, ELA ESCREVEU UMA VIDA – CAPÍTULO 2

Da Revista Época

Para quem não leu o Capítulo 1 (postado em 10/04), farei uma breve esplanada sobre a história de Eliana Zagui. Sua vida é marcada por muitas provações, força, coragem, perseverança, fé e determinação em viver. Eliana Zagui é uma mulher forte e de muita personalidade. Deitada numa cama, sem movimentos do pescoço para baixo, vive quase de forma vegetativa, respirando com a ajuda de equipamentos, com o orifício aberto no pescoço e a cânula da traqueostomia, há mais de 36 anos na UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo. Formada em História da Arte, tornou-se pintora, fala inglês e italiano e na última terça, dia 10 de abril, lançou o livro: “Pulmão de Aço – uma vida no maior hospital do Brasil”. Uma história real que me emocionou e me fez repensar algumas prioridades em minha vida. Espero que vocês gostem, reflitam e se emocionem, assim como eu. Um abraço! Walkíria Araújo.

imagem: revistaepoca.globo.com
Trechos de “Pulmão de aço – uma vida no maior hospital do Brasil”, de ELIANA ZAGUI:
O abraço
Adalberto foi protagonista de uma das minhas histórias mais marcantes. Eu tinha apenas oito anos e chorava desesperadamente. Ele entrou no quarto e perguntou o que estava acontecendo. Eu não sabia explicar. Solidão, tristeza, falta de carinho, dor. Tudo junto. Tentou me consolar, mas eu chorava cada vez mais. Adalberto então enfiou um dos braços por trás das minhas costas, me ergueu um pouquinho e me enlaçou com força. Foi uma sensação maravilhosa. Jamais havia ganhado um abraço. Até hoje, nem mesmo meus pais jamais me abraçaram.
O dia em que o palhaço chorou
Dr. Giovani fazia o possível para diminuir em nós a sensação de isolamento. Sempre com autorização da direção do HC, levou-nos a alguns passeios inesquecíveis. Providenciava tudo: ambulância, cilindros de oxigênio, respirador portátil. Com ele, os meninos foram a parques e ao zoológico de São Paulo. Mas nada pode ser comparado a nossa ida ao circo. Conhecer o circo era um sonho. Dr. Giovani arrumou tudo, preparou a infraestrutura e nos levou — eu, Paulo, Tânia e Pedro — em duas ambulâncias. Mas naquela tarde caiu um temporal, faltou público e o espetáculo foi cancelado. Vendo nossa imensa frustração, o médico procurou o dono do circo, explicou a situação e o levou até nós, nas ambulâncias. A reação foi imediata. A trupe nos maquiou como se fizéssemos parte do espetáculo e resolveu nos presentear com uma miniapresentação exclusiva. O encontro emocionou os artistas. A choradeira foi geral. Os palhaços conduziram o show, sob lágrimas.

O mundo, pela primeira vez
Depois de minha ida ao circo, com pouco mais de dois anos, fiquei 12 anos sem sair daqui. Assim, nada mais compreensível que o ataque de ansiedade que tive diante da primeira oportunidade de dar uma voltinha. Estava com 15 anos. Graças à terapia, já conseguia ficar de duas a três horas sem o respirador artificial. Também estava com a saúde razoavelmente em dia. O convite para um breve passeio partiu de Eleni. Ela me chamou para conhecer sua casa. Disse que faria tudo para obter a autorização do hospital e se responsabilizaria formalmente por mim. No dia do passeio estava tão tensa que fiquei com medo de passar mal e abortarem a saída. Fiz de tudo para disfarçar. Lembro-me da emoção que senti quando me colocaram na maca e a desceram ao pátio rumo à ambulância. Foi a primeira vez na vida em que pude ver as árvores em toda a sua grandeza. Da sacada, só conseguia ver as copas e parte do tronco. Vi também o céu, maior e mais bonito do que na TV. E me espantei com o movimento intenso de carros, ônibus e pessoas pela cidade.  A chegada à casa foi outra emoção arrebatadora. Era assim que era uma casa?
Perspectiva horizontal
Quem vive numa cama não tem a mesma perspectiva das outras pessoas. Depois de tanto tempo deitados, não conseguimos mais ver o mundo na vertical. No meu caso, principalmente, a perspectiva é toda horizontal. Há anos, por problemas respiratórios, não posso mais usar nem travesseiro. Vejo o mundo de baixo para cima ou de lado. Não sei o que é olhar para baixo. Paulo, quando criança, conseguia sentar-se um pouco. Em raras oportunidades foi colocado no chão. Por volta dos sete anos, ele cismou de jogar no chão o que estivesse por perto: cobertas, copos, talheres. As tias, intrigadas, perguntaram por quê. “Quero ver se o chão é duro”. A experiência não aplacou sua curiosidade, e ele resolveu torná-la mais concreta: atirou-se no chão. Descobriu da maneira mais difícil que o chão era mesmo duro: duas pernas fraturadas e meses de imobilização.


imagem: revistaepoca.globo.com

 
Traqueostomia na boneca
Próximo à minha cama havia um berço vazio. Eu pedia às tias que o deixassem ao meu lado. Nele ficava minha boneca preferida, a Mechinha, da Estrela. Eu a imaginava como um paciente-bebê, uma filhinha morando comigo no hospital. As atendentes colaboravam com minha fantasia. Colocavam um suporte com um frasco de soro e prendiam a ‘agulha’ no bracinho da boneca com esparadrapo. Mas eu queria um toque a mais de realismo: traqueostomizei a boneca e dei um jeito de injetar o soro.
Pedi que amarrassem uma cânula com gaze para simular uma traqueostomia. Na aplicação do soro, desviei uma agulha. Usei a boca para arrancar a tampinha. Com uma espátula consegui enfiar a agulha no braço do brinquedo e abrir a válvula. A boneca se encharcou e embolorou por dentro. Perdi o ‘bebê’, mas ganhei a consciência de que podia usar a boca para substituir as mãos em várias atividades.

O primeiro espelho
Claro que não me recordo de quase nada de meus primeiros dias aqui no hospital. Mas tenho vagas lembranças de crianças dentro dessas geringonças. Lembro-me também de espelhos colocados sobre nossas cabeças, presos aos pulmões de aço ou mesmo às cabeceiras de nossas camas. Não sei de quem foi a ideia, mas a achei genial. Por meio dos espelhos pude ver que não estava só. Ao meu lado, dezenas de outras crianças encontravam-se na mesma situação.
Mudança de endereço
Com a erradicação da poliomielite, o Instituto passou a se dedicar quase exclusivamente a acidentados graves e doentes com problemas do aparelho locomotor, além de realizar reimplante de membros e retirada de tumores que atingem ossos e coluna. A enfermaria foi transferida do sexto para o primeiro andar. Foi a minha única mudança de endereço nesses quase 40 anos.
Greve de fome – por amor
A presença de João do Pulo trouxe até o IOT grande número de policiais militares, encarregados de fazer a segurança e impedir o enorme assédio que se fazia ao nosso vizinho ilustre. Os policiais eram um mais lindo que o outro. Pelo menos para Tânia, Cláudia e eu. Paquerávamos os policiais de modo muito platônico, claro. Sem ter muito que fazer, eles ficavam por lá, zanzando pelo hospital, e nos davam atenção. Ficávamos de papo com eles o dia inteiro e entramos em greve de fome quando a direção do hospital, incomodada com o nosso falatório diuturno, recomendou que os policiais não mais tivessem acesso à nossa enfermaria. O protesto deu resultado.

A banalidade do mal
Viver isolados do mundo nos deixa despreparados para muitas situações e nos torna ingênuos. Alvos em potencial de pessoas mal-intencionadas. Por carência afetiva, desde pequenos nos apegamos com muita rapidez a quem quer que nos dispense um pouco de atenção. Não importa se médico, enfermeira, funcionário ou visitante. Bastava uma palavra de carinho para enxergarmos aquela pessoa como o nosso pai, mãe, protetor, alguém da família que nunca tivemos.
Nem sempre as pessoas de nosso convívio foram desprendidas e abnegadas, como Tia Lu, Tio Fernando, Dr. Giovani. Algumas visitas e alguns funcionários eram extremamente instáveis ou impacientes. Outros simplesmente nos roubavam. Nada tínhamos de muito valor, mas de vez em quando conseguíamos juntar alguns trocados para um lanche. Várias vezes esse dinheiro e os presentinhos que ganhávamos sumiram. Quando a desonestidade se misturava ao caráter completamente insensível de algumas pessoas, as decepções eram colossais.
Paulo conta: Quando tinha uns 20 anos, meu sonho era ter um videogame. Eu e Pedrinho falávamos disso o dia todo. Como não tínhamos dinheiro nem sabíamos fazer algo que nos rendesse uns trocados, resolvemos organizar uma vaquinha entre amigos, médicos e funcionários. Não tínhamos conta em banco, claro, e o Tio Fernando sugeriu que trocássemos o dinheiro obtido por dólar. Pacientemente, ele se encarregou de fazer o câmbio. Juntávamos um pouquinho e dávamos para ele trocar. As notas ficavam numa carteira, a qual eu não largava. Dormia com ela sob o travesseiro. Meses depois — muitos meses depois, é verdade — de começarmos nossa arrecadação, já tínhamos 300 dólares. Dinheiro suficiente para comprar um modelo de última geração.

Não nos aguentávamos de felicidade. Eu me agarrava àquela carteira até conseguir uma boa alma que pudesse nos comprar o aparelho, de preferência durante uma viagem ao exterior. Certo dia, me descuidei apenas por alguns minutos. Esqueci de levá-la comigo quando me tiraram da cama para trocar os lençóis. Assim que me colocaram de volta e consegui enfiar minha mão em baixo do travesseiro, soltei um grito de desespero: a carteira tinha desaparecido. Começamos a berrar. Uma das atendentes fez cara de surpresa e achou a carteira no chão. Sem os dólares. Choramos por semanas seguidas. O dinheiro não reapareceu.

Um comentário:

Anônimo disse...

que historia esse livro ta em todas as livrarias?