Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil
Brasília – Em uma ampla sala
colorida, cercado por cuidadoras, um grupo de seis bebês, com 6 meses de idade
em média, divide o mesmo espaço, brinquedos e histórias de vida. Todos eles
vivem em uma instituição de acolhimento enquanto aguardam que a Justiça defina
qual o seu destino: voltar para a família biológica ou ser encaminhados para
adoção.
A realidade das 27 crianças que
moram no Lar da Criança Padre Cícero, em Taguatinga, no Distrito Federal (DF),
repete-se em outras instituições do país. Enquanto aguardam os trâmites
judiciais e as tentativas de reestruturação de suas famílias, vivem em uma
situação indefinida, à espera de um lar. Das 39.383 crianças e adolescentes
abrigadas atualmente, apenas 5.215 estão habilitadas para adoção. Isso
representa menos de 15% do total, ou apenas um em cada sete meninos e meninas
nessa situação.
Aprovada em 2009, a Lei Nacional
da Adoção regula a situação das crianças que estão em uma das 2.046
instituições de acolhimento do país. A legislação enfatiza que o Estado deve
esgotar todas as possibilidades de reintegração com a família natural antes de
a criança ser encaminhada para adoção, o que é visto como o último recurso. A
busca pelas famílias e as tentativas de reinserir a criança no seu lar de
origem podem levar anos. Juízes, diretores de instituições e outros
profissionais que trabalham com adoção criticam essa lentidão e avaliam que a
criança perde oportunidades de ganhar um novo lar.
“É um engodo achar que a nova lei
privilegia a adoção. Em vez disso, ela estabelece que compete ao Estado
promover o saneamento das deficiências que possam existir na família original e
a ênfase se sobressai na colocação da criança na sua família biológica. Com
isso, a lei acaba privilegiando o interesse dos adultos e não o bem-estar da
criança”, avalia o supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da 1ª
Vara da Infância e da Juventude do DF, Walter Gomes.
Mas as críticas em relação à
legislação não são unânimes. O juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de
Justiça Nicolau Lupianhes Neto avalia que não há equívoco na lei ao insistir na
reintegração à família natural. Para ele, a legislação traz muitos avanços e
tem ajudado a tornar os processos mais céleres, seguros e transparentes. “Eu
penso que deve ser assim [privilegiar a família de origem], porque o primeiro
direito que a criança tem é nascer e crescer na sua família natural. Todos nós
temos o dever de procurar a todo momento essa permanência na família natural.
Somente em último caso, quando não houver mais solução, é que devemos promover
a destituição do poder familiar”, defende.
O primeiro passo para que a
criança possa ser encaminhada à adoção é a abertura de um processo de
destituição do poder familiar, em que os pais poderão perder a guarda do filho.
Antes disso, a equipe do abrigo precisa fazer uma busca ativa para incentivar
as mães e os pais a visitarem seus filhos, identificar as vulnerabilidades da
família e encaminhá-la aos centros de assistência social para tentar reverter
as situações de violência ou violação de direitos que retiraram a criança do
lar de origem. Relatórios mensais são produzidos e encaminhados às varas da
Infância. Se a conclusão for que o ambiente familiar permanece inadequado, a
equipe indicará que o menor seja encaminhado para adoção, decisão que caberá
finalmente ao juiz.
Walter Gomes critica o que chama
de “obsessão” da lei pelos laços sanguíneos. “Essa ênfase acaba demonstrando um
certo preconceito que está incrustado na sociedade que é a supervalorização dos
laços de sangue. Mas a biologia não gera afeto. A lei acaba traduzindo o
preconceito sociocultural que existe em relação à adoção.”
Uma das novidades introduzidas
pela lei – e que também contribui para a demora nos processos - é o conceito de
família extensa. Na impossibilidade de a criança retornar para os pais, a
Justiça deve tentar a reintegração com outros parentes, como avós e tios.
Luana* foi encaminhada ao Lar da Criança Padre Cícero quando tinha alguns dias
de vida. A menina já completou 6 meses e ainda aguarda a decisão da Justiça,
que deverá dar a guarda dela para a avó, que já cuida de três netos. A mãe de
Luana, assim como a de vários bebês da instituição, é dependente de crack e não
tem condições de criar a filha.
O chefe do Núcleo Especializado
da Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo, Diego Medeiros,
considera que o problema não está na lei, mas na incapacidade do Estado em
garantir às famílias em situação de vulnerabilidade as condições necessárias
para receber a criança de volta. “Como defensoria, entendemos que ela é muito
mais do que a Lei da Adoção, mas o fortalecimento da convivência familiar. O
texto reproduz em diversos momentos a intenção do legislador de que a
prioridade é a criança estar com a família. Temos que questionar, antes de
tudo, quais foram os esforços governamentais destinados a fortalecer os
vínculos da criança ou adolescentes com a família”, aponta.
Pedro* chegou com poucos dias de
vida ao Lar Padre Cícero. A mãe o entregou para adoção junto com uma carta em
que deixava clara a impossibilidade de criar o menino e o desejo de que ele
fosse acolhido por uma nova família. Mesmo assim, aos 6 meses de vida, Pedro
ainda não está habilitado para adoção. Os diretores do abrigo contam que a mãe
já foi convocada para dizer, perante o juiz, que não deseja criar o filho, mas
o processo continua em tramitação. Na instituição onde Pedro e Luana moram, há
oito crianças cadastradas para adoção. Dessas, apenas duas, com graves
problemas de saúde, têm menos de 5 anos de idade.
Enquanto juízes, promotores,
defensores e diretores de abrigos se esforçam para cumprir as determinações
legais em uma corrida contra o tempo, a fila de famílias interessadas em adotar
uma criança cresce: são 28 mil pretendentes cadastrados e apenas 5 mil crianças
disponíveis (veja infográfico). Para a vice-presidenta do Instituto Brasileiro
de Direito da Família, Maria Berenice Dias, os bebês abrigados perdem a
primeira infância enquanto a Justiça tenta resolver seus destinos. “Mesmo que
eles estejam em instituições onde são super bem cuidados, eles não criam uma
identidade de sentir o cheiro, a voz da mãe. Com tantas crianças abrigadas e
outras tantas famílias querendo adotar, não se justifica esse descaso. As
crianças ficam meses ou anos depositadas em um abrigo tentando construir um
vínculo com a família biológica que na verdade nunca existiu”, critica.
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