terça-feira, 10 de abril de 2012

COM A BOCA, ELA ESCREVEU UMA VIDA – CAPÍTULO 1

Oi gente, tudo bem com vocês? Além de pesquisar informações para nos mantermos atualizados, sempre procuro mensagens reflexivas ou histórias que nos façam fugir um pouco da nossa vida atribulada, das desonestidades e da violência que, infelizmente, insiste em ser uma realidade cada vez mais próxima de todos nós. Pois bem, me deparei com esta história linda, de muitas provações, força, coragem, perseverança, fé e determinação. Esta é a história de Eliana Zagui, uma mulher forte e de muita personalidade. Irei apresentá-la em dois capítulos: no primeiro, sua vida e no segundo, trechos de seu livro. Uma história real que muito me emocionou e me fez repensar algumas prioridades em minha vida. Espero que vocês gostem, reflitam e se emocionem, assim como eu. Um abraço! Walkíria Araújo.
 
Da Revista Época – por Eliane Brum
imagem: revistaepoca.globo.com
Aos 38 anos, Eliana Zagui, vítima de paralisia infantil, lança um livro contando como foi crescer e tornar-se mulher na UTI do maior hospital do Brasil. Eliana Zagui tinha 1 ano e 9 meses quando entrou no Hospital das Clínicas de São Paulo. Vinha no colo dos pais, quase morta, vítima do último grande surto de poliomielite que o Brasil enfrentou nos anos 70. Era 10 de janeiro de 1976. Eliana viveu. Mas nunca mais deixou o hospital. Em 23 de março, ela completou 38 anos – mais de 36 deles passados entre as paredes de uma UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do HC.

Deitada numa cama, sem movimentos do pescoço para baixo, mas com todas as sensações, Eliana reconheceu-se ali, viu o melhor e o pior do ser humano ali. Respirando com a ajuda de equipamentos, com o orifício aberto no pescoço e a cânula da traqueostomia, Eliana formou-se no ensino médio, aprendeu inglês e também italiano, fez curso de História da Arte e tornou-se pintora. Em seu mundo horizontal, conheceu o amor e também o desespero, tentou o suicídio e testemunhou a morte daqueles que amava. É essa vida que Eliana nos conta no livro que será lançado nesta terça-feira, 10 de abril, pela Belaletra Editora: “Pulmão de Aço – uma vida no maior hospital do Brasil”. Eliana escreveu a maior parte do livro com a boca, agarrando com os dentes uma espátula de garganta na qual é amarrada uma caneta. “Fiz do meu caderno algo como um saco de soco de lutadores de boxe. Escrever no papel é algo muito íntimo. Pude chorar, gritar, berrar, xingar, rir e gargalhar das coisas ridículas e saudosas.”

O desejo de agarrar suas memórias a alcançou na forma de uma voz do passado. A voz da enfermeira Fininha. Josefina Aparecida Saccani já tinha encerrado seu turno naquela tarde do verão de 1976. Mesmo assim, continuava no corredor do hospital de Jaboticabal, cidade próxima a Guariba, de onde o casal tinha vindo em busca de socorro para a filha. Inconformada, Fininha tentava encontrar uma carona para a menina que morreria naquela noite se não conseguisse chegar ao Hospital das Clínicas, na capital. A enfermeira esbarrou com seu vizinho Tercílio, que havia levado um funcionário ao hospital para suturar a mão. Implorou por uma carona. Em setembro de 2002, quase três décadas depois, Eliana atendeu ao telefone e escutou a voz de Fininha. A enfermeira nunca soube o nome da menina cuja vida salvou. Mas jamais foi capaz de esquecer a garotinha loira de olhos tristes. A voz de Fininha devolveu o passado à mulher que Eliana havia se tornado.

Assim começou o livro: “Pulmão de Aço”. Pulmão de Aço é uma máquina grande, parecida com um forno, onde pessoas com insuficiência respiratória eram colocadas, ficando só com a cabeça de fora. Eliana teve de fazer a traqueostomia e ligar-se para sempre a um respirador artificial. “Minha capacidade de sobrevivência fora do aparelho de respiração é bem limitada. No máximo três ou quatro horas. Aprendi já crescida a respirar com o que me resta dos pulmões – e isso exigiu grande esforço”, conta no livro. Devagar, porém, foi descobrindo que em seu corpo frágil e insuficiente morava mesmo um pulmão – e uma vontade – de aço. O pulmão resistia aos pedaços – à vontade, por inteiro.
 

“Estagnei por uns três ou quatro anos, pois o assunto que estava escrevendo era sobre a Eliana mulher, a Eliana desejo, a Eliana apaixonada e a Eliana sexo. Embora o sexo esteja um pouco mais liberal, ainda é um tabu para as mulheres e homens que têm alguma deficiência física. Muitos ainda nos veem como seres assexuados e intocáveis para uma relação amorosa. Não queria que ficasse uma coisa besta e boba de uma mulher apaixonada que só vive no mundo da lua e que espera um príncipe, num cavalo preto ou branco, que jamais existirá e chegará ao quintal do HC.”


imagem: revistaepoca.globo.com


Eliana só pode contar com a boca, por isso, quando a escrita de suas memórias começou a causar muitas dores nos dentes e no maxilar, o dentista foi peremptório: ela precisava continuar a escrever no computador. Ainda que seja com a boca, com a ajuda da espátula e da caneta, a pressão sobre os dentes e o maxilar é menor ao apertar as teclas do notebook que ao forjar letras no papel. “Escrever no computador é algo muito frio e mecânico demais, mas, infelizmente, não tive outra opção. Continuar a escrever o livro no computador foi uma droga, no início. Eu não continuei de onde parei no caderno, eu digitei tudo o que já tinha escrito e continuar daí é que foi horrível.” Eliana continuou.

Ao continuar, recuperou mais do que o seu passado. Devolveu uma alma ao que tinha sobrado apenas como estatística. Entre 1955 e o final da década de 70, houve 5.789 internações por pólio no Hospital das Clínicas. De todas as crianças atingidas com severidade, sete restaram na UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia. Restaram porque não melhoraram o suficiente para voltar para casa, restaram porque não pioraram o suficiente para morrer. Paralisados de quase tudo, em camas lado a lado, estes sete cresceram e adolesceram entre as paredes do hospital: Pedro, Anderson, Tânia, Luciana, Cláudia, Paulo e Eliana. E foram morrendo, não apenas porque o corpo se tornava cada vez mais devastado pela paralisia, pela insuficiência respiratória e pelas infecções, mas porque era brutal se tornar adolescente numa cama.

Tanto Eliana (38), quanto Paulo (44), poderiam viver em casa, com o apoio do hospital, se tivessem uma família para onde ir. Essa possibilidade nunca chegou perto de virar realidade. As visitas dos familiares são raras – e sem abraços. “Pulmão de aço” é o livro de Eliana, mas também é de Paulo. Com sonhos de cinema, Paulo tornou-se designer gráfico e hoje começa a trabalhar com animação digital. Juntos, eles desafiam as estatísticas da medicina, a textura de graveto dos ossos, seus pulmões exaustos, o abandono, a falta, as ausências. Eliana e Paulo vivem porque desejam. O ar lhes falta, mas a vida eles engolem às golfadas.

É por isso que este não é um livro de pena. Perguntei a Eliana que repercussão ela esperava de “Pulmão de Aço” e me deparei com uma personalidade forte e um olhar agudo: “O que fica muito latente, em todo ser dito ‘normal’, é o vício de linguagem, ao dizer: ‘Você é um exemplo de vida’. Penso que todo ser humano, além de ser exemplo de vida ao seu modo, tem que viver na prática o exemplo que é. Mas não só para se beneficiar do outro porque se livrou de uma depressão, de uma tentativa de suicídio, das desgraceiras que poderia ter feito caso não tivesse ouvido uma história como a minha e a de Paulo, ou a de qualquer outro deficiente. Não somos bengalas e nem amuletos da sorte”.

Este não é um livro de pena porque Eliana não permite que seja. Ela diz: “O tamanho de minha ansiedade não é possível numerar em grau, pois oscila bruscamente tanto para 0,00000% como para 3.000,000000001%. É uma contagem louca e muitas vezes sem nexo, como tenho brincado nesses últimos tempos. Lançar meu primeiro livro e ainda ser no próprio hospital em que vivo há (quase) 37 anos é uma cesariana megaprogramada. Embora estarei rodeada de médicos, das mais variadas especialidades – enfermeiras, técnicos de enfermagem, todas as especialidades que há dentro desse Instituto de Ortopedia e Traumatologia – o parto será só meu. Como o Paulo disse, outra pessoa não poderia escrever essa história, pois só eu vivi, chorei, gritei, aprendi e cresci junto com ele e com os outros que também foram nossa família, mas Deus levou”.

Eliana e Paulo, sempre às voltas com o comprimento da vida, tornaram-se capazes de dar largura à sua existência. Na apresentação do livro, em letra cursiva, Eliana diz: “Se fisicamente não posso andar, em minha mente sou capaz de voar sem limites”. E ela, assim como Paulo, voa. Acredito que a escrita, se tem uma função, não é a de apaziguar o leitor. A escrita tem de perturbar, cutucar, às vezes até ferir para lembrar que somos vivos, que sangramos e que nossa história está sempre em curso. Acho que o livro escrito por Eliana Zagui faz isso. Arranca-nos do lugar e nos leva para um universo que, sem a narrativa, jamais alcançaríamos. É por isso que é um bom livro. Porque Eliana Zagui tem uma história (e que história!) para contar. E a contou com verdade.

Os leitores desta coluna terão um pequeno grande privilégio, o de conhecer alguns trechos do livro com exclusividade. Quem quiser conhecer o livro inteiro, pode encomendar pelo site da editora: www.belaletra.com.br. E, a partir do dia 10/4, também poderá comprar nas principais livrarias do país e, pela internet, nos sites de venda de livros. Escrito na primeira pessoa, com uma tiragem inicial de 5.500 exemplares, o livro deverá ter ainda um segundo lançamento, desta vez numa livraria. Eliana sonha com dar autógrafos entre prateleiras de livros – fora do hospital e além das quatro paredes.

Um comentário:

Anônimo disse...

Valzinha só mesmo vc uma mulher de rara sensibilidade e amor ao próximo para nos presentear com esta história emocionante e linda. Um bjão amiga Vânia