Da Revista Veja
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As imagens ficarão gravadas como um raio na memória dos brasileiros. Na sétima volta do Grande Prêmio de San Marino, no autódromo de Ímola, na Itália, Ayrton Senna passa direto pela curva Tamburello, a 300 quilômetros por hora, e espatifa-se no muro de concreto. À 1h40 da tarde, hora do Brasil, um boletim médico do hospital Maggiore de Bolonha, para onde o piloto foi levado de helicóptero, anunciou a morte cerebral de Ayrton Senna. Não havia mais nada a fazer. Ayrton Senna da Silva, 34 anos, tricampeão mundial de Fórmula 1, 41 vitórias em Grandes Prêmios, 65 pole-positions, um dos maiores fenômenos de todos os tempos no automobilismo, estava morto.
Ninguém simboliza melhor a comoção que tomou conto do mundo que a imagem
de Alan Prost chorando num dos boxes de Ímola. Não era o choro de um torcedor,
mas de um rival, o maior de todos em dez anos de brigas dentro e fora das
pistas, um alter ego de Ayrton Senna na Fórmula 1. Na manhã de domingo, minutos
antes de entrar pela última vez no cockpit de sua Williams, Senna encontrou-se
com o ex-adversário, deu-lhe um tapinha nas costas e comentou: "Prost,
você faz falta." Horas mais tarde, cercado pelos jornalistas, o francês
não conseguiu retribuir a gentileza. "Estou consternado demais para
falar", limitou-se a dizer, com lágrimas nos olhos.
Foi o triste epílogo de um final de semana em que a morte passeou pelo
circuito de Ímola. Na sexta-feira, o carro do brasileiro Rubens Barrichello
espatifou-se. Barrichello só não morreu porque o choque foi amortecido pelos
pneus. Nos treinos de sábado, o carro do austríaco Roland Ratzenberger se
desintegrou no muro de concreto depois de passar reto numa curva. O piloto
chegou morto ao hospital, vítima de comoção cerebral. Esse foi o quadro de
presságios que antecedeu o acidente com Senna. O piloto brasileiro manteve a
liderança do Grande Prêmio por exatos 21 minutos. Às 9h40, vinte e cinco horas
depois da morte de Ratzenberger, a Williams de Senna sumiu repentinamente da
pista. "Eu vi a traseira do seu carro bater no solo violentamente",
contou o alemão Michael Schumacher, que ia colado em Senna na entrada da curva.
"Em seguida, ele perdeu completamente o controle."
O Williams era apontado como o melhor carro do mundo e, nesta temporada,
tinha também o melhor piloto do mundo. Como foi possível um acidente como esse?
O que existe por enquanto são especulações. De todas elas, a mais provável
aponta para uma combinação de dois fatores: a pista ruim com um defeito
mecânico. Schumacher diz que o carro pulou duas vezes antes de sair da pista. O
ex-campeão Niki Lauda afirma que o problema foi mecânico, provavelmente uma
quebra na suspensão, mesma opinião do brasileiro Nelson Piquet. Uma outra
explicação está nos pneus. Como a corrida estava começando depois de uma parada
provocada por um acidente na largada, os pneus ainda não teriam atingido a
temperatura e a pressão adequadas para manter o carro na pista. Senna pisou
fundo e foi jogado para fora.
O acidente com Ratzenberger, ocorrido na véspera, é mais fácil de
explicar porque uma câmara de televisão flagrou o momento em que o carro perdeu
o aerofólio dianteiro. Sem essa peça, que pressiona o carro para baixo e o
mantém firme na pista, Ratzenberger voou direto de encontro ao muro. É possível
que algo assim tenha ocorrido com Senna. Na tarde de segunda-feira, uma análise
em câmara lenta feita pela televisão francesa mostrava que antes de sair da
pista o carro do piloto brasileiro teria perdido uma peça, não identificada
pela TV. "O problema é que Ímola é uma pista tão rápida que não dá tempo
de reagir a qualquer falha", diz Niki Lauda. "A menos que você ponha
o muro a 200 metros da pista." Na pista atual a distância entre a faixa de
asfalto e o muro é de menos de dez metros. "É óbvio que houve uma falha
mecânica", diz Alain Prost. "O carros estão muito perigosos porque
estão mais difíceis de dirigir."
A opinião de Prost pode não explicar o acidente, mas ajuda a entender o
dilema atual da Fórmula 1. O Williams-Renault foi o melhor carro nas duas
últimas temporadas porque, além de ser o mais veloz, era também o que tinha os
controles mais eficientes. Engatava as marchas na hora certa e compensava as
falhas na pista com a chamada suspensão ativa, cuja tarefa é impedir que a
trepidação desestabilize o carro. Agora, não. O carro continua veloz, mas o
piloto é quem tem de fazer tudo sozinho. A falta da suspensão ativa tornou o
carro instável demais. O próprio Senna havia apontado esse problema num artigo
de jornal antes do Grande Prêmio Brasil. "Os carros estão rápidos demais e
difíceis de controlar", escreveu Senna. "O novo regulamento é uma
arma contra os pilotos."
Um outro problema são as paradas no boxe. Este ano tornou-se obrigatório
o reabastecimento e as trocas de pneus. Depois do acidente com Senna, um carro
atropelou um mecânico da Ferrari na saída dos boxes depois da troca de pneus.
Na segunda-feira, a Federação Internacional de Automobilismo (Fisa) convocou
uma reunião de emergência em Paris, onde se iria discutir a colocação de um
limite de velocidade para a entrada nos boxes - uma ironia em se tratando de um
esporte onde vence o mais veloz.
A dimensão da tragédia com Ayrton Senna pode ser avaliada pelos estragos
dentro e fora do carro. No local do impacto, o muro de concreto ficou marcado
com as cores azuis do Williams. O chão ao lado do carro destruído ficou marcado
por uma larga poça de sangue. O capacete do piloto rachou de cima abaixo no
lado de direito, o que sugere que ele bateu com a cabeça no muro. O rosto ficou
inteiramente destruído. Toda a parte frontal sofreu um afundamento de tal ordem
que tornou impossível qualquer intervenção cirúrgica.
Em coma e já com uma parada
cardíaca, o piloto ainda recebeu quatro litros e meio de sangue no trajeto do
autódromo até o hospital. Isso equivale a 80% de todo o sangue que circula no
corpo humano e dá a idéia exata da gravidade do seu quadro. O primeiro boletim
médico, às 10 horas, falava em perda de sangue e múltiplas fraturas no crânio.
O segundo, uma hora mais tarde, era ainda mais desanimador. Noticiava-se
"coma grave", "fortes hemorragias" e "grave
traumatismo craniano". Do hospital Maggiore, o corpo de Ayrton Senna foi
levado para o Instituto Médico Legal de Bologna, de onde seria transportado
para o Brasil num caixão selado. Na segunda-feira, o promotor Maurizio
Passarine interditou o autódromo e abriu um processo contra os organizadores. O
carro e o capacete também foram apreendidos pela Justiça italiana.
A notícia da morte de Senna
deixou os pilotos desolados. Schumacher, o vencedor da corrida - a terceira na
atual temporada -, deixou o pódio e foi chorar nos boxes. O austríaco Gerard
Berger, companheiro de equipe de Ayrton Senna na temporada do ano passado na
McLaren e personagem de um pavoroso acidente em Imola há cinco anos, levou um
choque ao saber da notícia. "Não sei como vou voltar às pistas depois
disso", afirmou. Em Buenos Aires, Juan Manuel Fangio, 82 anos, a maior
legenda de todos os tempos do automobilismo, sentiu-se mal ao ouvir a notícia
pelo rádio. "Não, isso não pode ter acontecido", foi sua primeira
reação. Mais tarde, em uma nota divulgada pela família, Fangio declarou:
"O mundo perdeu um dos maiores pilotos e eu perdi um grande amigo.
Compartilho com os brasileiros esse momento de dor."
Há doze anos, a Fórmula 1 não
vivia momentos tão terríveis. Durante mais de uma década, o circo mais veloz do
mundo viveu tranqüilamente sua existência milionária. O último piloto a morrer
durante uma corrida tinha sido Ricardo Palleti, na largada do Grande Prêmio do
Canadá, em 13 de junho de 1982. Imaginava-se que depois de tanto tempo e tantas
mudanças nas regras e na tecnologia de construção dos carros, a Fórmula 1,
embora continuasse a ter acidentes espetaculares, não fosse mais o picadeiro
mortal dos anos 70, em que um em cada sete pilotos morreram em ação. As mortes
de Senna e Ratzenberger reavivaram a verdade sobre um esporte fascinante mas cruel,
onde se ganha muito dinheiro em troca de altos riscos. "É preciso que se
diga uma coisa: a Fórmula 1 é um esporte extremamente perigoso e não depende da
habilidade do piloto evitar acidentes", disse o ex-campeão Niki Lauda, ele
próprio vítima de um acidente. "Senna era o melhor piloto de todos os
tempos. Ele sabia tudo."
Radiografia da morte
Imagine um pêndulo de aço de 50 quilos martelando numa campana com a
espessura e a resistência de uma casca de ovo. Essa é a imagem apropriada para
descrever como se movimentou o cérebro de Ayrton Senna na hora do choque de sua
Williams contra o muro de concreto. É assim que se comportou a massa encefálica
do piloto, com seu peso multiplicado por 100 no momento da colisão, batendo
violentamente contra a caixa craniana. Esses sucessivos choques internos foram
causados por um fenômeno chamado desaceleração súbita. Ele ocorre quando um
determinado objeto em altíssima velocidade, no caso da Williams-Renault a cerca
de 300 quilômetros por hora, encontra pela frente um objeto estático, o muro de
concreto. O resultado é devastador do ponto de vista clínico.
"As camadas do cérebro
deslizam umas sobre as outras, guilhotinando os axônios, espécie de fios que
fazem as ligações nervosas da cabeça com todo o corpo", diz o médico Luiz
Alcidez Manreza, diretor do serviço de emergência neurológica do Hospital das
Clínicas de São Paulo. "Esse tipo de lesão cerebral é a principal causa de
morte instantânea em traumatismos de crânio." Nesses casos, 60% das
vítimas morrem. Na melhor das hipóteses, essas lesões neurológicas deixam
graves seqüelas, ou o sobrevivente vira um vegetal. Dramatizando ainda mais a
comparação, o badalo em questão, o cérebro de Senna, não era um corpo de metal
como o abrigado num sino de verdade. O cérebro humano é formado por um tecido
frágil, pouco mais consistente que um pudim.
Bastariam essas lesões, causadas
pela desaceleração, para matar Ayrton Senna. Mas não foi só isso. A cabeça do
piloto foi muito mais afetada do que fazem crer as imagens na televisão.
Pernas, tórax, abdômen e coluna cervical, as partes do corpo mais propensas a
sofrer o impacto de acidentes na Fórmula 1, saíram ilesas do desastre de Senna.
A explicação é que essa região do corpo estava bem resguardada pelo cockpit, a
cápsula quase indestrutível de fibra de carbono que abriga o piloto. Sem essa
proteção, a cabeça bateu contra o muro de concreto. Uma testemunha, que viu o
corpo de Senna antes de o caixão ser lacrado, conta que sua cabeça estava toda
arrebentada. Ele sofreu um afundamento na testa e fraturas múltiplas na base do
crânio, que provocaram hemorragias e edemas nessa região. Sua cabeça foi,
portanto, alvo de dois tipos de traumatismo: o mais interno, a nível nervoso,
causado pela desaceleração de velocidade, e o mais superficial, resultado da
colisão direta de sua cabeça na parede.
Num caso tão grave assim, nem o
melhor resgate médico do mundo seria capaz de fazer milagres. Não havia o que
fazer, do ponto de vista médico. Ainda assim, o trabalho executado pela equipe
médica de San Marino, embora correto, demorou mais do que o normal. Os
bombeiros até que chegaram rápido ao local do acidente, cerca de vinte segundos
depois da batida, e não entraram em ação porque não havia risco de fogo na
Williams. Mas o serviço ambulatorial se atrasou. Os médicos da equipe de
socorro do Grande Prêmio de San Marino só começaram o atendimento de Senna um
minuto e quarenta segundos após o acidente. "Demoraram uma
eternidade", diz o neurocirurgião Hélio Laterman, ex-chefe da equipe de
socorro nos Grandes Prêmios de Jacarepaguá de 1985 e 1986, no Rio de Janeiro.
"Aqui no Brasil em trinta segundos já chegamos com o socorro médico ao
local de um acidente", diz o médico Jorge Pagura, chefe do atendimento
neurológico nas corridas de Fórmula 1 disputadas em São Paulo.
O salvamento de Senna se deu no
limite do aceitável, beirando a negligência. Dois minutos e meio depois da
batida, ele foi retirado de sua Williams e, noventa segundos mais tarde, sofreu
uma traqueostomia em plena pista - uma abertura em sua traquéia para que o
piloto pudesse respirar. A boca e o nariz estavam bloqueados pelo sangue. O
helicóptero que levou o piloto para o Hospital Maggiore de Bolonha decolou
dezessete minutos depois da batida. Mas já era tarde. Os médicos italianos
decretaram sua morte cerebral às 13h40 de domingo, horário de Brasília.
Quarenta minutos mais tarde, o coração de Ayrton, que ainda batia com auxílio
de aparelhos, parou.
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