Da Revista Época por Ruth de Aquino
imagem: macumbaviking.blogspot.com |
Um pai foi
condenado a pagar à filha R$ 200 mil de indenização por abandono afetivo. A
decisão, inédita, é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em São Paulo. Essa
história mexe com sentimentos – e não com reconhecimento de paternidade ou
pensão alimentícia. Não deveria pertencer à Justiça, e sim à vida e à
consciência de cada um. Como legislar sobre a prática do amor?
É um caso comum. Uma professora de 38 anos,
Luciane Nunes, que mora em Votorantim, interior paulista, decidiu há dez anos
processar o pai, Antônio Carlos Jamas dos Santos, dono de postos de combustível
em quatro Estados, por não ter cuidado dela direito, na infância e na
adolescência. Luciane havia nascido de uma longa relação extraconjugal do pai,
que durou oito anos.
A mágoa da menina foi agravada por ciúme e
rejeição. Os filhos que o pai teve em casamento formal com outra mulher
estudaram nas melhores escolas, aprenderam várias línguas. Ela não. Além de uma
vida mais confortável, seus meio-irmãos tiveram a atenção paterna em casa. As brincadeiras,
as broncas, os carinhos, os conflitos. Ela não.
Luciane cresceu, casou, teve filhos. Mas não
superou o ressentimento. Decidiu colocar o pai de castigo numa sala de
tribunal. Mostrar publicamente que, como empresário, ele pode ser bem-sucedido
e morar em condomínio de luxo. Mas, como pai, embora a tenha reconhecido, não a
amou o suficiente. Não a educou. Deixou a tarefa a cargo da mãe. Antônio Carlos
conta uma história bem diferente: diz que tentou se aproximar várias vezes da
filha, mas a mãe não permitia e era agressiva.
Como encontrar a verdade? Não invejo a juíza
Nancy Andrighi, do STJ, que justificou a sentença. “Amar é faculdade, cuidar é
dever.” A juíza está certa, não há como discordar. Ela listou algumas
obrigações constitucionais da paternidade, “deveres inerentes ao poder
familiar”: convívio, cuidado, criação e educação dos filhos. É melhor pensar
direito antes de engravidar. Para dar à luz e não às trevas.
Luciane é
hoje uma mulher que conseguiu, após uma década de processo, uma vitória
judicial importante. Mas não o amor do pai nem a paz interna. A indenização,
fixada inicialmente em R$ 415 mil, foi reduzida à metade. Antônio Carlos diz
que recorrerá ao Supremo Tribunal Federal (STF). Se o Supremo julgar e der
razão a Luciane, abrirá caminho para uma enxurrada de filhos que não se sentem
amados.
Por enquanto, o abandono afetivo não é
previsto em lei. Há dois projetos. Um deles propõe detenção de até seis meses
para pais acusados de não dar afeto ao filho menor. O outro propõe indenizar
por danos morais os filhos e os idosos sem afeto. Quantos velhos são esquecidos
em asilos sem receber visita ou ouvir uma só palavra de filhos e netos?
É complicado legislar sobre o exercício do
amor e suas subjetividades. Se todos decidíssemos pedir indenização por uma
carência temporária ou persistente de afeto, as Varas de Justiça teriam de
fechar. Não dariam conta.
O sentimento de abandono nem sempre traduz a
realidade. Algumas pessoas acham que amar pressupõe um contato diário. É
preciso falar todos os dias. Pessoalmente, pelo telefone ou computador. Há quem
se sinta sempre abandonado, mesmo com dezenas de amigos.
O trauma é
maior se quem não demonstra amor é o pai ou a mãe. A falta de afeto pode causar
profundos estragos emocionais nas crianças e nos adolescentes. Alguém duvida
disso, mesmo sem ser psicanalista ou psicólogo?
Para ser pai e mãe, não basta dar nome e
dinheiro. Tem de acompanhar, conversar, orientar, ouvir, disciplinar, brigar,
beijar, rir e chorar. Ajudar no dever de casa. Consolar, estimular. Não é nada
fácil ser pai ou mãe. Todos erramos em alguma medida, por excesso ou falta de
zelo. Como somos humanos, dificilmente encontraremos o equilíbrio certo para
cada filho, todos diferentes entre si.
Não sei se a mãe de Luciane bloqueou o acesso
do pai à filha. Muitas mulheres agem assim, por vingança e ignorância. Mas
conheço um número maior de mães que se esforçam, em vão, para o pai se envolver
mais na educação do filho. Há homens, separados, que acham que, para ser pai,
basta almoçar uma vez por mês com os filhos, compartilhar fotos e trocar uma
ideia pelo Facebook, mesmo morando na mesma cidade. Não basta.
A decisão que beneficia Luciane, nas palavras
da juíza Nancy, “abre um caminho para a humanização da Justiça”. Talvez abra
caminho também para injustiças. Uma indenização não muda sentimentos. Não
obriga ninguém a passar a amar. Ao contrário, azeda uma aproximação futura.
Se existe algum benefício na decisão do STJ de
São Paulo, é levar as famílias a uma reflexão. Já que amar é cuidar, por acaso
sou omisso ou negligente com meus filhos? E com meus pais? O Dia das Mães é um
bom domingo para pensar se cuidamos direito de quem mais amamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário