Da revistaepoca.globo.com, por Felipe Pontes
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ÉPOCA ouviu
quatro dos dez brasileiros que contribuem com a Dignitas, organização suíça que
cobra cerca de R$ 15 mil para fazer suicídio assistido. Eles aceitaram contar
por que decidiram encomendar a própria morte.
Orlando Correia, funcionário público, 46
anos
"O
suicídio marcou minha infância. Quando eu era pequeno, um primo mais velho
tentou se matar com um tiro no peito e não conseguiu. Eu acompanhei suas
sessões diárias de fisioterapia no hospital, por meses, sem perguntar nada. Até
hoje não sei qual foi seu motivo. Eu simplesmente ficava olhando para seu
rosto, curioso para saber o motivo daquela atitude. Eu achava o suicídio uma
coisa medonha, mas tinha certo fascínio. Minha visão a respeito do tema
melhorou ao passo que envelheci e amadureci. Comecei a entender que existem
vários tipos de suicídio e suicidas. Ano passado, vi uma reportagem na
televisão e fiquei impressionado com o depoimento de um membro da Dignitas. Ele
havia sido diagnosticado com uma doença grave que não tinha ainda manifestado os
sintomas. Mesmo assim, estava indo para a clínica morrer. Fiquei impressionado
com a convicção da pessoa e me inscrevi na clínica na mesma hora.
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O suicídio
não precisa ser uma coisa trágica. Pode ser calmo, bem pensado e com dignidade.
No meu caso seria mais fácil tomar uma decisão dessas, já que não tenho filhos
nem esposa. Já fui religioso, hoje sou ateu. Eu não tenho problema algum de
saúde, nunca desejei me matar e nem teria coragem de pular de um prédio ou dar
um tiro no peito. Adoro viver. Mas, se a vida em algum momento se tornar um
fardo para mim, ela não terá mais sentido e eu vou procurar uma forma digna e
decente de morrer. As pessoas não fazem seguro de vida? Vejo a Dignitas como um
seguro de morte."
Raquel (nome fictício), aposentada, 68
anos
"Há
quatro anos, eu estava andando na rua quando desmaiei, caí e quebrei uma
costela. Investigando a causa daquele desmaio, descobri que tenho ateromatose,
uma doença degenerativa que entope minhas artérias carótidas e aorta. Isso
prejudica o fluxo de sangue e oxigênio para meu cérebro, provocando desmaios e
a morte de células nervosas.
A ateromatose é imprevisível. Posso ter um
derrame, dentro de um mês ou 15 anos, e perder a consciência de quem sou para
sempre. Logo que fui diagnosticada, me inscrevi na Dignitas. Eu conhecia e
admirava o trabalho do americano Jack Kevorkian, o Dr. Morte, que auxiliava
seus pacientes terminais a morrer. Fiquei aliviada ao descobrir uma organização
capaz de fazer isso, mesmo que eu tivesse de viajar até a Suíça. Não sei se usarei
o serviço algum dia, mas é um conforto ter essa opção. Tenho duas filhas
maravilhosas. Uma é mais emotiva e não gosta de tocar no assunto. Mas nenhuma
das duas se opõe à minha decisão. Caso eu tenha algum problema grave, com
sequelas, elas sabem onde encontrar uma pasta com declarações escritas sobre o
meu desejo de cometer suicídio assistido e ser cremada.
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Antes, eu
era muito ativa. Hoje em dia, tudo é devagar por causa dessa doença. Tenho sono
o tempo todo. Sinto dor para engolir. Às vezes, não consigo me equilibrar. Sei
que há uma cirurgia para tratar da ateromatose. Mas é um risco. De dois
conhecidos que fizeram, um morreu durante a operação e outro ficou com sequelas
graves. Como qualquer outra pessoa, adoraria morrer dormindo, de enfarte, daqueles
fulminantes. Mas nada me garante esse destino, e eu tenho pavor de perder o
controle do meu cérebro. Sei bem como é acompanhar alguém que sofreu disso.
Antes de morrer, minha mãe passou três anos delirando num leito de hospital,
sem reconhecer pessoas e falar coisa com coisa. Foi terrível. Proibi minhas
filhas de a visitarem. As duas tinham que guardar somente lembranças boas da
avó, que não parecia mais um ser humano. Quero livrar as minhas filhas dessa
dor. Para mim, a morte é o final feliz. Você e seu sofrimento não existem mais.
As pessoas próximas ficam tristes, passam por um período de luto e depois
sentem saudade.
Frequento
médicos e faço exames regularmente. Não deixei de fumar um maço de cigarros por
dia. Não há muito o que fazer nesse estágio da vida. Daqui pra frente, o que
vier é lucro. Já deixei tudo pronto para elas. Não tenho mania de morte. Sou
bem-humorada. Faço um esforço danado para realizar tudo o que ainda posso.
Ultimamente, ando atarefada com a reforma do meu apartamento. Não entendo
quando alguém sonha viver até os cem anos e não imagina a qualidade de vida e
limitações que teria nesta idade. Experimentei muito mais do que várias pessoas
de 90 anos. Não fiquei na janela olhando a vida. Aproveitei minha juventude,
peguei muito sol, viajei pelo mundo, namorei, casei, me divorciei e trabalhei
duro. Não me sinto uma suicida. Jamais pularia da janela. Cada um de nós é
diferente e tem as suas crenças. O que serve para mim pode não servir a mais
ninguém. Respeito isso. Não sou dona da verdade. Mas sou dona da minha
vida."
"Até
agora não tive nenhuma doença grave. Cadastrei-me no serviço da Dignitas para
apoiar a causa. Não tenho medo de comentar abertamente minha visão sobre
suicídio assistido. Cada um tem direito de decidir a respeito da própria vida.
Meus irmãos me entendem e apoiam. Já meus pais nem gostam de ouvir. Posso
entendê-los. Não é natural perder o próprio filho. Só não quero que me vejam
como louco. Se eu tivesse uma doença crônica ou problema físico incurável,
certamente usaria o serviço. A clínica faz algo nobre ao oferecer essa
oportunidade para quem está sofrendo. Mas eu espero, de verdade, não precisar
usar o serviço."
Ana Paula (nome fictício), ex-atleta, 32
anos
"Na
escola, eu lutava judô e era a atleta da sala. Depois, me formei em Educação
Física e pratiquei todo tipo de esporte. Malhava e corria diariamente, pegava
onda quase todo fim de semana e participei de maratona. Tudo acabou há três
anos. Dei um mergulho no mar, de um lugar alto, não vi que a água estava rasa e
caí de cabeça num banco de areia. Quebrei uma vértebra na coluna cervical e
fiquei tetraplégica. Desde então, só consigo mexer a cabeça.
A lesão não
tem cura. Passei meses fazendo um tratamento experimental, nos Estados Unidos,
e não melhorei. Centenas de médicos testam novos métodos e técnicas de
cirurgias pelo mundo, cobram caro e não oferecem resultados. Conheço muita
gente que viajou, pagou e se frustrou. Por isso, não me arriscaria a fazer uma
cirurgia que pode não dar resultado. E o risco de que eu falo não é risco de
vida ou financeiro, é o risco de me decepcionar. Fiquei muito tempo achando que
as coisas iriam melhorar e acontecer. Pesquisei muito o assunto e sei que a
perspectiva não é boa.
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Há muita esperança em células-tronco, mas nada palpável
até agora. Um cientista brasileiro, Miguel Nicolelis, quer usar a robótica para
fazer um tetraplégico dar o pontapé inicial na Copa de 2014. Isso não me anima,
não quero usar um exoesqueleto e sair na rua igual ao Robocop. Quero restaurar
a função ativa da minha musculatura. Eu faço fisioterapia, a única coisa que
posso fazer. De segunda à sexta, participo de sessões para não deixar meus músculos
atrofiarem e vou ao psicólogo e psiquiatra, uma vez cada. Eu não sou uma pessoa
depressiva ou bipolar, nunca tive tendência para isso. Tento viver minha vida,
saio bastante com meus amigos e família. Estou trabalhando numa empresa, onde
uso um computador e telefone com adaptações, mas tudo é difícil. Ainda mais
quando vejo a vida das pessoas andando e a minha, parada.
Eu não
consigo nem comer e escovar os dentes por conta própria. É muito penoso,
passivo. Como posso esperar viver uma vida plena e longa se sempre estarei
dependendo de alguém? É impossível, inviável e intolerável. Eu tinha uma vida
plena até o dia do meu acidente. É fácil me dizer que devo tocar a vida. Não.
Eu posso desejar uma qualidade de vida que eu não tenho e não sou obrigada a aceitar
aquilo. É difícil para quem está de fora entender. As pessoas são egoístas, só
pensam no quanto elas vão sofrer se você for embora. Não conseguem ter ideia do
seu sofrimento. Gostaria que a minha decisão fosse respeitada. Eu entrei em
contato com a Dignitas há um ano e meio. Fiquei aliviada em descobrir que lá
não é um açougue. Eles se importam, querem saber o que você sente. Com a
Dignitas, passei a ter uma alternativa, uma saída. Senti uma paz impressionante
ao me cadastrar lá.
Eu sei que
não vou envelhecer assim. O suicídio é uma coisa que vai acontecer na minha
vida e eu espero que não demore. É algo que precisa ser bem trabalhado em
família, porque eu não quero que eles sofram com isso. Principalmente meus
pais, ainda mais minha mãe, que me carregou no ventre. É muito complicado.
Queria organizar uma reunião familiar com um psicólogo para discutir a
situação. Não quero fazer nada em desarmonia, não é justo. Eu tive a sorte e
oportunidade de ir atrás de tudo possível para melhorar, e mesmo assim não tenho
perspectiva. É por isso que vou até a Suíça."
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